As cidades contemporâneas, maiores representantes da diversidade humana, ou, nas palavras de Nelson Rodrigues, laboratório da vida humana, apresentam uma nova configuração do espaço urbano, bem como, uma nova forma de leitura deste espaço, tanto material, quanto social. A cidade torna-se assim, um laboratório para construir e testar as teorias sobre a vida humana, e sua diversidade tem despertado cada vez mais o interesse da Antropologia, bem como de outras ciências. No caso da antropologia, é preciso compreendê-la através do seu entrelaçamento de processos vitais, de seus agentes sociais. Não se deve entender a cidade apenas como meio ambiente, mas sim, como construtora de estilos de vida, formando tipos específicos que são portadores de suas vozes.
Em seu livro, Ferrara (1) ressalta que a história da cidade se dá a partir do uso do espaço urbano e dos seus usuários, suas formas de uso, seus gostos, suas escolhas, etc. Desta forma, ela não é só uma manifestação concreta; é feita dos seres humanos que nela habitam e, principalmente, de suas ações. É feita de diversidade humana, e serão os agentes sociais que compõem esta diversidade que darão significação ao espaço e vida à cidade. O espaço, sem os usos e as significações humanas a ele atribuídas, é vazio de significados.
A cidade abriga uma complexa rede de articulações culturais; ela transforma a mente dos seres humanos, reorganiza as noções de tempo e espaço, configura imagens, transforma-se de acordo com seus atores sociais, à medida que transforma os próprios atores. A rua adquire uma dimensão humana, o espaço livre se torna movimento de corpos. É o homem que faz e que dá vida a cidade. O urbano se torna palco de inovações, manifestações, ações coletivas e transformações sociais.
Por isso, além das leituras tradicionais que se fazem, é preciso lê-la também pelas linguagens não-verbais. É preciso exercer sobre ela uma visão-leitura, uma espécie de olhar táctil, quando não, multissensível, sinestésico, sonoro, visual, gestual, olfativo. É explorar a percepção da cidade a partir do despertar de todos os sentidos humanos.
A partir do uso e da visão multissensível, a rua, na sua função fixa, tradicional, concreta, espaço destinado ao fluxo, pode também, se transformar em outras coisas: casa, trajeto de procissão, local de protestos e passeatas, vitrine, palco, local de trabalho, ponto de encontro, ganhando um novo sentido humano a partir dos usos e dos olhares.
Para entender o processo dinâmico da cidade, é preciso lembrar que ela não está desprovida de atores, ou seja, não é possível separar o indivíduo do espaço, como pretende o pensamento cartesiano. É o processo dinâmico das pessoas que a ela dá vida: “viver é agir, uma rua animada é uma rua que vive”(Moles e Rohmer) (2). Essa dinâmica é formada por uma rede complexa, que inclui aqueles que comumente são excluídos dos usos comuns do espaço (ou seja, comércio formal, passeio de carro, shoppings centers, etc), e para compreender tal rede, faz-se necessário incluirmos estas outras formas de apropriações em nossas pesquisas.
O artista de rua está entre este grupo que utiliza “informalmente” o espaço urbano. Ele se apropria das ruas, calçadas e calçadões, para a exibição de sua arte. É nas ruas e na sua diversidade que ele encontra seu palco, seu local de trabalho, seu público, seus clientes, dando uma leitura de palco ao espaço que até então era de fluxo. Além disso, a arte de rua é acessível a todos, é uma exibição fora dos lugares tradicionais, como os teatros, museus e galerias. Por estar fora dos lugares comuns de exibição de arte, a arte das ruas, bem como os artistas, têm maior facilidade de comunicação com o público na rua, principalmente pela linguagem que aqueles utilizam, e também, por provirem, muitas vezes, das classes populares com as quais se comunicam.
Este tipo de arte, bem como sua linguagem, se dá através de sua capacidade performática do artista. Ela está em seu corpo, como no caso das estátuas vivas; na sua habilidade, como nos malabaristas e cuspidores de fogo; e para tantos outros artistas, na capacidade de atrair o público para si, na sua auto-propaganda, na sua capacidade comunicativa e de expressão, tanto oral quanto corporal. É isso que atrairá o público, que parará o fluxo, que quebrará com a tradicional imagem em movimento. É fazer de si e em si a própria arte.
Os demais espaços tradicionais (museus, galerias, etc.), ou os artistas acadêmicos, que tentam se comunicar com as camadas menos favorecidas, têm certa dificuldade, público, na medida em que se encontram em espaços opressores, que, mesmo sendo gratuitos algumas vezes, são dotados de regras e linguagens que nem sempre são assimiladas pelas classes populares. Por isso, a arte de rua tem seu caráter democrático, ao se realizar em espaço público, de fácil acesso a qualquer transeunte, desde o mendigo que mora na praça ao alto executivo que passa para ir ao trabalho. Ao contrário dos museus e galerias, ela não restringe nem constrange seu público, não seleciona quem pára para ver, sendo um espaço, mesmo que com suas normas, teoricamente de todos.
Além de seu caráter democrático, a intervenção do artista de rua faz com que a cidade quebre seu fluxo, sua pressa que forma um aparente caos. Ele cria uma nova configuração do espaço na medida em que consegue reunir a diversidade ao redor de si. O artista observado, quando começava a pintar, reunia homens, mulheres, jovens, crianças, idosos, ou seja, pessoas de diferentes gêneros, idades e camadas sociais. Ele possibilitava o encontro de estranhos; proporcionava a cumplicidade ou mesmo a comunicação entre rostos anônimos, na medida em que estes olhavam e apreciavam um ponto comum. Sendo assim, a intervenção faz com que o sujeito urbano saia da esfera individual, de sua cápsula de proteção (esta, criada pela constante ameaça de violência a qual o indivíduo acredita estar exposto ao circular pelo espaço público) e passe a fazer parte do social, ao menos durante a durabilidade do espetáculo.
Mas a cidade é também a representação da crise, da violência, do medo, da insegurança, da ansiedade, tornando os indivíduos “vítimas do contexto urbano”. Diante da ineficiência das autoridades estatais para o combate à violência, às suas causas e conseqüências, os indivíduos acabam por mudar seus comportamentos e atitudes, mudando suas práticas e sociabilidades cotidianas, tornando a cidade um lugar de pressa e de desconfiança frente ao outro.
Essa tensão faz com que o poder público crie uma ordem dentro da aparente desordem. Em Santa Maria
Lembrando que a pesquisa é de 2005. Desde então, mesmo não podendo afirmar, não creio ter havido grandes mudanças na configuração do espaço., como em qualquer outra cidade, há uma configuração (ou utilização) do espaço considerada legítima por aqueles que detém o poder. Durante o dia, a Praça Saldanha Marinho é o lugar dos feirantes, artesãos e artistas de rua, enquanto o Calçadão é o lugar do fluxo e do comércio formal, sendo que, apenas no final da tarde e início da noite, quando este espaço é “invadido” por diversas pessoas, principalmente jovens, já que esta é uma cidade universitária, que levam para lá seu chimarrão, este se torna um lugar de permanência. A partir do momento em que se rompe o ordenamento do espaço, o poder público tenta intervir para restabelecer a configuração legitimada.
A modificação do uso do espaço, antes aberto e de fluxo constante, transformado em lugar de parada e reunião de pessoas, a partir da presença do artista de rua, causa apreensão em alguns comerciantes locais. Estes, recorrem a intervenção da fiscalização municipal no acontecimento, exigindo que tirassem o artista do local. O medo de viver na cidade, fez com que os comerciantes e fiscalização alegassem estar o artista atrapalhando o fluxo, e conseqüentemente, a vigilância. Já o público, o povo, motivado pelo mesmo medo, toma posição diferente, alegando que aqueles deviam estar atrás de quem estava roubando e não de quem estava trabalhando honestamente. Sendo assim, a intervenção no espaço possibilita não somente o encontro, mas também o conflito de interesses e o debate entre as diferentes esferas da vida pública.
Por fim, vemos que, a partir de intervenções de diferentes atores sociais, entre eles, os artistas de rua, há uma quebra da rotina de fluxo da cidade. As tensões, as apropriações do espaço, as novas leituras e o encontro da diversidade faz com o espaço urbano adquira significações humanas, ganhando, desta forma, vida. A noção de cidade provida de atores rompe com a idéia cartesiana que dissocia o espaço do indivíduo, que coloca as significações de um independente do outro. O indivíduo não é exterior, distante do mundo. Ele está no mundo.
Podemos ver que, na contemporaneidade, a cidade complementa a vida do indivíduo, enquanto o espaço concreto só ganha vida, significado, a partir de sua apropriação, de sua leitura e interpretação. Fora isso, o espaço é vazio de significados. Ele só pode ser visto no momento que há alguém que olha. Só será olhado a partir do momento em que houver o que olhar, e daí, passará a significar alguma coisa, tanto a partir da ação daquele que se apropria do espaço, mas também, da evocação da memória de algo vivido no espaço.
(1) FERRARA, Lucrecia d’Aléssio. Ver a cidade: cidade, imagem, leitura. São Paulo, Nobel, 1998.
(2) MOLES, Abraham; ROHMER, Elisabeth. Labyrinthes du Vecu: L’Espace: Matière d’actions. Paris: Méridiens, 1982.
Artigo publicado no Diário de Santa Maria, Caderno Mix, em 17 e 18 de maio de 2008.
4 comentários:
Este eu já conhecia :D
Que bom te ter um pouco por aqui, amiga, sempre será bem-vinda!
Beijos
Amei a hospedagem e os poucos dias, amiga... valeu por tudo!!!
Segundo o governo, o interesse que conta é o daquele que paga o imposto do lugar.
Mas na prática é de quem grita mais alto (DEMOcracia) ou de quem tem o interesse que interessa mais ao administrador.
Todos pagam muitos impostos... e quando o espaço é público ele deve ser usado de forma realmente pública.
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