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quarta-feira, 28 de julho de 2010

Galeano

Pouco comento aqui, mas Eduardo Galeano é um de meus escritores favoritos... O cunho cotidiano e político, além de poético, de suas narrativas, crônicas, pensamentos e observações realçam nossa luta e fé no mundo.

A indicação de hoje é "O Livro dos Abraços". Ele está disponível em PDF na internet (api.ning.com/files/.../livrodosabraos.pdf), mas pra quem, assim como eu, curte ter o livro em mãos, em papel, pra poder manipular, assinalar, carregar, recomendo a compra, até por não ser um livro caro.

Alguns trechos:

A arte das crianças
Mario Montenegro canta os contos que seus filhos lhe contam. Ele senta
no chão, com seu violão, rodeado por um círculo de filhos, e essas crianças ou
coelhos contam para ele a história dos setenta e oito coelhos que subiram um em
cima do outro para poder beijar a girafa, ou contam a história do coelho azul que
estava sozinho no meio do céu: uma estrela levou o coelho azul para passear pelo
céu, e visitaram a lua, que é um grande país branco e redondo e todo cheio de
buracos, e andaram girando pelo espaço, e saltaram sobre as nuvens de algodão, e
depois a estrela se cansou e voltou para o país das estrelas, e o coelho voltou para o
país dos coelhos, e lá comeu milho e cagou e foi dormir e sonhou que era um coelho
azul que estava sozinho no meio do céu.

Os sonhos esquecidos
Helena sonhou que deixava os sonhos esquecidos numa ilha. Claribel
Alegria recolhia os sonhos, os amarrava com uma fita e os guardava bem
guardados. Mas as crianças da casa descobriam o esconderijo e queriam vestir os
sonhos de Helena, e Claribel, zangada, dizia a eles:
— Nisso ninguém mexe.
Então Claribel telefonava para Helena e perguntava:
— O que eu faço com seus sonhos?

A burocracia/3
Sixto Martínez fez o serviço militar num quartel de Sevilha. No meio do
pátio desse quartel havia um banquinho. Junto ao banquinho, um soldado
montava guarda. Ninguém sabia porque se montava guarda para o banquinho. A
guarda era feita por que sim, noite e dia, todas as noites, todos os dias, e de
geração em geração os oficiais transmitiam a ordem e os soldados obedeciam.
Ninguém nunca questionou, ninguém nunca perguntou. Assim era feito, e sempre
tinha sido feito.
E assim continuou sendo feito até que alguém, não sei qual general ou
coronel, quis conhecer a ordem original. Foi preciso revirar os arquivos a fundo. E
depois de muito cavoucar, soube-se. Fazia trinta e um anos, dois meses e quatro
dias, que um oficial tinha mandado montar guarda junto ao banquinho, que fora
recém-pintado, para que ninguém sentasse na tinta fresca.

Causos/2
Nos antigamentes, dom Verídico semeou casas e gentes em volta do
botequim El Resorte, para que o botequim não se sentisse sozinho. Este causo
aconteceu, dizem por aí, no povoado por ele nascido.
E dizem por aí que ali havia um tesouro, escondido na casa de um
velhinho todo mequetrefi.
Uma vez por mês, o velhinho, que estava nas últimas, se levantava da
cama e ia receber a pensão.
Aproveitando a ausência, alguns ladrões, vindos de Montevidéu,
invadiram a casa.
Os ladrões buscaram e buscaram o tesouro em cada canto. A única coisa
que encontraram foi um baú de madeira, coberto de trapos, num canto do porão. O
tremendo cadeado que o defendia resistiu, invicto, ao ataque das gazuas.
E assim, levaram o baú. Quando finalmente conseguiram abri-lo, já longe
dali, descobriram que o baú estava cheio de cartas. Eram as cartas de amor que o
velhinho tinha recebido ao longo de sua longa vida.
Os ladrões iam queimar as cartas. Discutiram. Finalmente, decidiram
devolvê-las. Uma por uma. Uma por semana.
Desde então, ao meio-dia de cada segunda-feira, o velhinho se sentava no
alto da colina. E lá esperava que aparecesse o carteiro no caminho. Mal via o
cavalo, gordo de alforjes, entre as árvores, o velhinho desandava a correr. O
carteiro, que já sabia, trazia sua carta nas mãos.
E até São Pedro escutava as batidas daquele coração enlouquecido de
alegria por receber palavras de mulher.

Noite de Natal
Fernando Silva dirige o hospital de crianças, em Manágua. Na véspera do
Natal, ficou trabalhando até muito tarde. Os foguetes esposavam e os fogos de
artifício começavam a iluminar o céu quando Fernando decidiu ir embora. Em casa,
esperavam por ele para festejar.
Fez um último percorrido pelas salas, vendo se tudo ficava em ordem, e
estava nessa quando sentiu que passos o seguiam. Passos de algodão: virou e
descobriu que um dos doentinhos andava atrás dele. Na penumbra, reconheceu-o.
Era um menino que estava sozinho. Fernando reconheceu sua cara marcada pela
morte e aqueles olhos que pediam desculpas ou talvez pedissem licença.
Fernando aproximou-se e o menino roçou-o com a mão: — Diga para... —
sussurrou o menino —. Diga para alguém que eu estou aqui.

Os ninguéns
As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a
pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte
a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca,
nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e
mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o
ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e
mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais
da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

Anúncios
Vende-se: — Uma negra meio boçal, da nação cabinda, pela quantidade
de 430 pesos. Tem rudímentos de costurar e passar.
— Sanguessugas recém-chegadas da Europa, da melhor qualidade, por
quatro, cinco e seis vinténs uma.
— Um carro, por quinhentos patacões, ou troca-se por negra.
— Uma negra, de idade de treze a quatorze anos, sem vícios, de nação
bangala.
— Um mulatinho de idade onze anos, com rudímentos de alfaiate.
— Essência de salsaparrilha, a dois pesos o frasquinho.
— Uma primeiriça com poucos dias de parida. Não tem cria, mas tem
abundante leite bom.
— Um leão, manso feito um cão, que come de tudo, e também uma cômoda
e uma caixa de embuia.
— Uma criada sem vícios nem doenças, de nação conga, de idade de uns
dezoito anos, e além disso um piano e outros móveis a preços cômodos.
(Dos jornais uruguaios de 1840, vinte e sete anos depois da abolição da escravatura.)

Teologia/2
O deus dos cristãos, Deus da minha infância, não faz amor. Talvez o
único deus que nunca fez amor, entre todos os deuses de todas as religiões da
história humana. Cada vez que penso nisso, sinto pena dele. E então o perdôo por
ter sido meu super-pai castigador, chefe de polícia do universo, e penso que afinal
Deus também foi meu amigo naqueles velhos tempos, quando eu acreditava Nele e
acreditava que Ele acreditava em mim. Então preparo a orelha,, na hora dos
rumores mágicos, entre o pôr-do-sol e o nascer subir da noite, e acho que escuto
suas melancólicas confidencias.

O diagnóstico e a terapêutica
O amor é uma das doenças mais bravas e contagiosas. Qualquer um
reconhece os doentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que jamais dormimos,
despertos noite após noite pelos abraços, ou pela ausência de abraços, e padecemos
febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes. O
amor pode ser provocado deixando cair um punhadinho de pó de me ame, como por
descuido, no café ou na sopa ou na bebida. Pode ser provocado, mas não pode
impedir. Não o impede nem a água benta, nem o pó de hóstia; tampouco o dente de
alho, que nesse caso não serve para nada. O amor é surdo frente ao Verbo divino e
ao esconjuro das bruxas. Não há decreto de governo que possa com ele, nem poção
capaz de evitá-lo, embora as vivandeiras apregoem, nos mercados, infalíveis
beberagens com garantia e tudo.

A cultura do terror/3
Sobre uma menina exemplar: Uma menina brinca com duas bonecas e
briga com elas para que fíquem quietas. Ela também parece uma boneca porque é
linda e boazinha e porque não incomoda ninguém.
(Do livro Adelante, de J. H. Figueira, que foi livro escolar nas escolas do Uruguai até
poucos anos atrás).

A cultura do terror/6
Pedro Algorta, advogado, mostrou-me o gordo expediente do assassinato
de duas mulheres. O crime duplo tinha sido à faca, no final de 1982, num subúrbio
de Montevidéu.
A acusada, Alma Di Agosto, tinha confessado. Estava presa fazia mais de
um ano; e parecia condenada a apodrecer no cárcere o resto da vida.
Seguindo o costume, os policiais tinham violado e torturado a mulher.
Depois de um mês de contínuas surras, tinham arrancado de Alma várias
confissões. As confissões não eram muito parecidas entre si, como se ela tivesse
cometido o mesmo assassinato de maneiras muito diferentes. Em cada confissão
havia personagens diferentes, pitorescos fantasmas sem nome ou domicílio, porque
a máquina de dar choques converte qualquer um em fecundo romancista; e em
todos os casos a autora demonstrava ter a agilidade de uma atleta olímpica, os
músculos de uma forçuda de parque de diversões e a destreza de uma matadora
profissional. Mas o que mais surpreendia era a riqueza de detalhes: em cada
confissão, a acusada descrevia com precisão milimétrica roupas, gestos, cenários,
situações, objetos...
Alma Di Agosto era cega.
Seus vizinhos, que a conheciam e gostavam dela, estavam convencidos
de que ela era culpada*.
— Por quê? — perguntou o advogado.
— Porque os jornais dizem.
— Mas os jornais mentem — disse o advogado.
— Mas o rádio também diz— explicaram os vizinhos —. E até a televisão.

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