Entrevista: a criminalização dos movimentos sociais“Quando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra aparece brandindo suas foices e facas
e ocupando latifúndios e prédios públicos, imediatamente a “opinião pública” reage dizendo que isto
é uma “violência”. Mas essa mesma “opinião pública” não percebe ou não quer perceber que por
trás disto que chama de violência há uma brutalidade muito maior: a de deixar milhares de pessoas
sem terra para plantar, sem alimento, engrossando os penhascos e periferias das grandes cidades.
Tornou-se normal pensar que milhares de pessoas não tenham o que comer, o que vestir ou onde
morar”,
A afirmação é de José Carlos Moreira da Silva Filho, professor do PPG em Direito da Unisinos.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o pesquisador comenta a relação estabelecida
entre o Poder Público e os movimentos sociais, e destaca o surgimento de ativistas que
apresentam como novidade uma “afirmação positiva da diferença”, legitimando a alteridade das
minorias. José Carlos Moreira da Silva Filho é graduado em Direito, pela Universidade de Brasília (UnB),
mestre, pela Universidade Federal de Santa Catarina, com a dissertação O pluralismo jurídico,
os novos movimentos sociais e a exterioridade em Dussel, e doutor, pela Universidade Federal
do Paraná (UFPR).
Atualmente, também é conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O senhor afirma, no artigo “Criminologia e alteridade: o problema da
criminalização dos movimentos sociais no Brasil”(1), que a criminalização dos
movimentos sociais é um reflexo da dificuldade em se aceitar os limites existenciais,
revelando a arrogância do logos ocidental e a negação da alteridade. Quais são
as raízes desse sentimento de negação dos movimentos sociais? Por que a maioria
da população brasileira e os setores conservadores da sociedade negam a alteridade
das minorias?
José Carlos Moreira da Silva Filho - Há uma relação direta entre o projeto de predomínio
da razão ocidental (seus modelos sociais e pretensões de totalidade e univocidade, quer
da soberania nacional, da razão científica ou do modelo econômico capitalista e
desenvolvimentista) e a dificuldade que temos em lidar com o diverso e o diferente, inclusive
com relação ao que há de estranho em nós mesmos. É difícil admitir nossa finitude e,
conseqüentemente, admitir que não temos condições de descrever e compreender tudo.
Que assim como a morte limita nossos projetos e possibilidades e o nascimento nos impõe
um direcionamento prévio que não é da nossa escolha, as diferentes pessoas e grupos sociais
não podem caber em nossos conceitos, classificações e estereótipos
(nem nós mesmos cabemos). Sempre permanece algo indecifrável e que não pode ser
aprisionado na palavra. O problema é que admitir isto pode trazer uma grande sensação
de insegurança e uma humildade social e cognitiva que não cabe em nossos milenares sonhos
de domínio e grandeza.
Contudo, se refletirmos bem, notaremos que a democracia visada em nossa Constituição,
com a expressão “Estado Democrático de Direito”, reside em uma inerente incerteza, em
um desafio diuturnamente renovado e sem garantias de construir o espaço comum a partir
das diferenças e da pluralidade que compõem a nossa sociedade. Permanecemos,
porém, apegados à idéia de que temos um projeto único, a partir do qual fica fácil e
simples dizer quem é bom ou quem é mau, quem é normal ou quem é marginal.
Assim, tudo o que destoa muito do padrão socialmente imposto e regurgitado pelo
senso comum midiático se apresenta como algo perigoso, pois desafia as verdades
estabelecidas e denuncia as suas insuficiências. Quando o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra aparece brandindo suas foices e facas e ocupando latifúndios
e prédios públicos, imediatamente a “opinião pública” reage dizendo que isto é uma
“violência”. Mas essa mesma “opinião pública” não percebe ou não quer
perceber que por trás disto que chama de violência há uma brutalidade muito
maior: a de deixar milhares de pessoas sem terra para plantar, sem alimento, engrossando
os penhascos e periferias das grandes cidades. Tornou-se normal pensar que milhares
de pessoas não tenham o que comer, o que vestir ou onde morar. Por quê? Porque não
nos sentimos responsáveis ou não queremos nos auto-incriminar. Porque é muito mais fácil
criminalizar o outro que denuncia a injustiça e a perversidade do nosso modelo social.
É muito mais fácil criminalizar os negros do que reconhecer que a nossa sociedade
cresceu às custas do sangue dos seus antepassados; criminalizar os indígenas e dizer
que eles são uma ameaça à soberania nacional do que reconhecer que o Brasil de hoje
está erguido sobre os corpos de etnias que simplesmente desapareceram da face da terra;
criminalizar os “esquerdistas” e comunistas do que reconhecer que precisamos pensar em
um modelo social que consiga incluir sem excluir, que leve em conta projetos e sujeitos
coletivos. O conceito de crime serve como um estigma que isola e demoniza o que no
fundo diz respeito a nós mesmos. É como se pudéssemos nos sentir purificados com o
extermínio daquilo que seria um lado ruim nosso e que projetamos sobre determinados
grupos e pessoas.
IHU On-Line - Em que sentido os discursos estabelecidos no país ao longo dos anos
contribuíram para a construção de uma imagem pejorativa e negativa dos
movimentos sociais?
José Carlos Moreira da Silva Filho - O que podemos chamar de espaço público no Brasil vem
de uma tradição privada e patrimonialista que nos remete às Casas-Grandes e às oligarquias rurais,
às relações de apadrinhamento e aos nepotismos, à idéia de que os setores populares não devem
se organizar, mas sim obedecerem às ordens do patrão ou do doutor.
As grandes transformações estruturais da sociedade brasileira geralmente ocorreram pelo alto.
Foi assim com a independência, com a república, com a industrialização. É claro que sempre
houve pressões e reações populares, mas acabaram sendo estigmatizadas como baderna,
sublevação ou coisa parecida.
Há uma imagem de inferioridade e incapacidade que acaba por ser introjetada pelos próprios
grupos populares e que se reflete em uma desvalorização das lutas e organizações comunitárias.
Aliando-se tal discurso ao grande desconhecimento e desinteresse que há sobre a realidade dos
movimentos e dos setores sociais que eles representam, chegamos ao resultado da consolidação
de um discurso pejorativo e negativo. Para citar um exemplo, podemos perceber que a imagem do
MST, hoje, perante a sociedade, especialmente se nos fixarmos na imagem passada pelos
programas de TV e grandes jornais, não é muito diferente do conceito que tinham as Ligas
Camponesas no final da década de 1950 e início dos anos 1960. Essas ligas lideradas por
Francisco Julião (1), no sertão pernambucano, eram tidas por boa parte da classe média como
ferozes grupos de lavradoresrebeldes que ateavam fogo nos canaviais e destruíam tudo o que
encontravam. Dificilmente elas eram vistas como o sinal de uma necessária alternativa à
situação de opressão e penúria na qual viviam milhares de lavradores premidos entre o
subemprego no campo e a miséria das favelas nas grandescidades. O que aconteceu com
esses grupos nós já sabemos: o golpe militar os destroçou, forçando Julião a se exilar no
México. Contudo, a memória dessas lutas é recuperada pelos
movimentos de hoje. A dificuldade de superar o estigma, porém, continua a mesma. É muito
raro, por exemplo, encontrar na TV uma leitura do MST que mostre ao telespectador as inúmeras
experiências bem-sucedidas de assentamentos cooperativos que tentam construir e manter um
modelo de propriedade coletiva, orgânica e comunitária. Não quero dizer que o modelo proposto
pelo MST é o único possível ou a melhor alternativa, entretanto temos de reconhecer que o
movimento chama a atenção para diversos problemas da sociedade brasileira: a iniqüidade que
campeia no meiorural brasileiro, a insuficiência de políticas públicas no campo, a não
realização da reforma agrária no nosso país, ou seja, trata de questões que não são só
do campo, mas também das grandes cidadese do seu caos urbano.
IHU On-Line - Como o senhor tem percebido a criminalização dos movimentos
sociais no Rio Grande do Sul, especialmente no caso que envolveu o Ministério
Público e o MST?
José Carlos Moreira da Silva Filho - Confesso que fiquei escandalizado com as recentes
manifestações do Ministério Público gaúcho contra o MST. Elas ficaram claras a partir
da ação civil pública apresentada pelos promotores Luís Felipe de Aguiar Tesheiner e Benhur
Biancon Junior visando à desocupação de dois acampamentos do MST próximos à fazenda
Coqueiros, na região norte do Estado.
Ação, aliás, que teve a liminar concedida no mesmo dia pela Vara Cível de Carazinho. Tanto
nesta ação quanto no relatório produzido pelo “serviço de inteligência” do MP (e como já havia
notado Marco Aurélio Weissheimer em importante artigo), é palpável a mórbida e preocupante
semelhança com os Relatórios e Inquéritos Policiais Militares, verdadeiras excrescências
jurídicas de triste memória, que eram moeda corrente na ditadura militar brasileira. Posso
afirmar isto com todo o conhecimento de causa, pois como membro da Comissão de Anistia
do Ministério da Justiça me deparo, semanalmente, com essas pérolas. A paranóia
anticomunista é explícita tanto na ação quanto no relatório do Conselho Superior do MP e nas
entrevistas que Gilberto Thums, relator da “investigação”, vem concedendo. O MST e seus
“perigosos” integrantes compostos por mulheres, crianças, idosos e lavradores “fortemente”
armados com foices e outros instrumentos de trabalho do campo são apresentados como “
anti-capitalistas esquerdistas” (como se isto fosse algum crime) que representam uma
ameaça à sociedade e à soberania nacional.
Recomendam-se no relatório alguns absurdos inconstitucionais como a proibição das
marchas do MST (que contraria o elementar direito de ir e vir), a proibição dos assentamentos
próximos às fazendas consideradas passíveis de desapropriação (que ocorrem com a
autorização dos proprietários), a retirada das crianças dos assentamentos, das marchas e
das escolas (ou seja, a retirada dos filhos do convívio dos seus pais e parentes), e, por fim,
a dissolução do MST (que atenta claramente contra o direito e a liberdade de organização).
É bem verdade que esta última e apocalíptica recomendação foi retificada posteriormente
pelo MP, pois certamente até eles acharam isto exagerado. Mas o fato de que tal recomendação
constou explicitamente de uma ata anterior aprovada pelo Conselho Superior do MP é
sintomático. É sintomático também o fato de que a “investigação” levada a cabo pelo MP
se apoiou em uma investigação secreta conduzida pela Brigada Militar, e na qual se realizou
um verdadeiro mapeamento do MST no estado, com nomes de integrantes, localizações e
outros detalhes que revelam um monitoramento ostensivo bem aos moldes dos que foram
realizados pela Ditadura Militar.
Inversão de funções
Ora, cabe à Brigada Militar realizar este tipo de “inteligência”, divulgando em programas de
TV que os movimentos sociais são um caso de polícia? Creio que não pode haver maior
evidência quanto à criminalização dos movimentos sociais e à mal resolvida transição democrática
brasileira que ainda mantém como ocupantes de cargos públicos pessoas que mandaram ou
realizaram prisões arbitrárias, torturas e ostensivo monitoramento ideológico durante o regime
de exceção ocorrido no país. Importante saber também que, contrariando as conclusões da
Brigada Militar e do MP, a Polícia Federal concluiu em inquérito penal promovido durante todo o
ano de 2007, que não há o menor indício ou evidência de vínculos do MST com as Farc ou
qualquer outro tipo de contato com organização estrangeira que vise agredir a soberania nacional.
Investigações favorecem setores privados
Fico me perguntando se a referência ao “Estado Democrático de Direito” vai acabar virando
uma espécie de nova Doutrina de Segurança Nacional no país, pois esta é a justificativa agora
apresentada: “é preciso defender o Estado Democrático de Direito”, afirma Gilberto Thums.
Ora, pensei que o MP tinha em vista o interesse do povo, especialmente dos setores mais
desvalidos e injustiçados. Para que serve a previsão constitucional da função social da
propriedade? No entanto, o relatório do MP não apresenta uma avaliação sequer quanto
aos problemas que vêm sendo enfrentados pelo campo gaúcho e pela massa de trabalhadores
do campo explorados e sem direito a terra para plantar, cedendo cada vez mais espaço
à monocultura destrutiva do agronegócio, tanto no sentido ambiental quanto no humano.
No relatório, não há um autor ou uma fonte sequer favorável ao MST. As provas “científicas”
mais palpáveis são fruto de reportagens de senso comum da Zero Hora, do relatório
secreto da Brigada Militar e dos depoimentos de grandes proprietários. A única fonte
acadêmica referida é o sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), Zander Navarro, que, aliás, apesar de tecer severas críticas à organização interna
do movimento, em recente nota pública repudiou veementemente as ações e declarações do
MP gaúcho. Ocorre de fato uma verdadeira inversão de valores: os movimentos que denunciam
a injustiça social são os culpados pela instituição de um regime que traz mais injustiça social.
IHU On-Line - O senhor afirma que nos processos de conflitos podem ser definidos
parâmetros mínimos de legitimação. Os conflitos entre MP e MST ajudaram a definir
esses novos parâmetros, por exemplo? De alguma maneira iniciativas como a proposta
pelo MP reiteram a legitimidade dos movimentos, uma vez que abre-se espaço para
discussão? Ou pelo contrário, essa iniciativa apenas reforça a criminalização, uma
vez que é realizada por um órgão visto como “competente” pela opinião pública?
José Carlos Moreira da Silva Filho - O conflito que ora se instala entre o MP e o MST ainda é
muito recente para que se possa avaliar o que dele resultará. Este conflito pontual é sinal de um
conflito de interesses muito maior entre os que apóiam um modelo de sociedade que não investe
na agricultura familiar e na reforma agrária, que favorece o enriquecimento de certos setores a
despeito de outros, e os que procuram propor alternativas mais inclusivas a este modelo, ainda
que não sejam as melhores ou as mais exitosas. O espaço para discussão acaba acontecendo
mesmo quando o intuito é sufocar este espaço, e creio que isto demonstra um avanço democrático
da sociedade brasileira. Não acredito, contudo, que a intenção dos promotores que participaram
desta ação orquestrada foi a de promover qualquer discussão a respeito do assunto. Muito pelo
contrário, vieram cheios de certezas e apoiaram violenta ação policial militar que teve lugar nas
cidades de São Gabriel e Viamão durante os meses de maio e junho. E, é claro, não hesitaram
em criminalizar o MST, portanto favorecendo notadamente tal tendência.
* Grifos meus.
Notas:
(1) O artigo foi apresentado no evento Jornadas de Estudos Criminológicos ocorrido na PUCRS, em 2007. (Nota da IHU On-Line).
(2) Francisco Julião (1915-1999): advogado brasileiro que defendeu, a partir da década de 50, as causas dos camponeses
organizados, pressionados através de subterfúgios da lei pelos senhores de terra que tentavam desarticular a organização
de ligas camponesas e expulsar de suas terras os moradores do Engenho Galiléia. Para ampliar seu campo de luta,
ingressou na tribuna política e elegeu-se Deputado Estadual em Pernambuco. Foi um dos maiores ativistas pela reforma
agrária no Brasil. Exilou-se no México quando teve seus direitos cassados, em 1964. Foi anistiado em 1979 e faleceu
em Tepoztlán, no México. Sobre sua trajetória, confira o livro escrito pelo jornalista Vandeck Santiago, Francisco Julião:
luta, paixão e morte de um agitador (Recife: Assembléia Legislativa, 2001). (Nota da IHU On-Line)
(www.ecodebate.com.br) entrevista publicada pelo IHU On-line, 28/07/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto
Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.
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