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quarta-feira, 3 de março de 2010

Resenha: Ensaio sobre o Dom, de Marcel Mauss
Por Letícia de Abreu Gomes

1.
Nesta resenha busca-se recapitular algumas idéias da obra mestra de Marcel Mauss, Ensaio sobre o dom, publicada em 1923, bem como, trazer uma breve narrativa da vida do autor.
Marcel Mauss é francês, nasceu em Épinal, em 10 de maio de 1872 e veio a falecer em Paris, em 10 de fevereiro de 1950. Junto com seu tio Émile Durkheim, funda a escola sociológica francesa, sendo assim, considerado sociólogo, mas também, o pai da antropologia francesa, sendo ele o primeiro francês a desenvolver a etnologia e, mesmo que ele mesmo não tenha realizado, incentivou seus alunos a realizarem trabalho de campo. Opondo-se a psicologia, que estudava as manifestações individuais, Mauss buscou compreender as manifestações coletivas autônomas e inconscientes, mas que estão presentes na consciência do indivíduo, entendo ser esse o papel das Ciências Sociais. Assim como Durkheim, para Mauss também o TODO precede as partes, ou seja, a sociedade não é o acúmulo das experiências individuais, mas está acima destes. Ele utiliza o método comparativo, sendo o primeiro francês a interessar-se pelos fenômenos e fatos sociais nas sociedades não ocidentais (“tribos primitivas”).
Deixou suas idéias de legado a seus alunos, que vieram a desenvolvê-las com mais avidez, tendo eles então fundado o estruturalismo francês em Antropologia: Georges Dumézil, Claude Lévi-Strauss e Louis Dumont.
Apesar de ser socialista, Mauss tentou separar suas pesquisas científicas (sem discutir o sucesso desta tentativa) de suas idéias políticas, apesar de ter publicado alguns artigos políticos sobre a Revolução Bolchevique e o socialismo.
Tendo perdido muitos colegas de academia na I Guerra Mundial, inclusive o tio em 1917, que não suportou a morte de seu filho, Mauss teve que completar muitos trabalhos inacabados de seus colegas mortos e teve que assumir o comando da escola sociológica francesa no lugar de seu Durkheim.

2.
A partir de seus estudos sobre a Polinésia, comparando outras sociedades, pode-se perceber na obra deste autor que todos os princípios, matrimoniais, econômicos, políticos, religiosos, jurídicos e diplomáticos estão fundamentados nas alianças não somente entre indivíduos, mas entre pessoas morais (coletividades, geralmente representada por um chefe tribal), que se estabelecem a partir do Dom e da Dádiva, ou seja, a partir da obrigação de dar e retribuir. Esta obrigação, ao mesmo tempo em que é imposta, entre aqueles que a praticam, tem seu caráter de voluntariedade e solidariedade, rompendo assim com as dualidades positivistas e do sistema capitalista. Mas mesmo com esse caráter de solidariedade, elas representam interesses sociais.
Um sujeito que recebe uma dádiva (taonga) tem a obrigação de retribuir, com algo de igual ou maior “valor” (por não achar outra palavra). Porém estas trocas não se realizam apenas com objetos materiais, podendo-se oferecer e retribuir com festas, banquetes, canções, etc., e também não é necessário retribuir com o que se recebeu, podendo um receber um bracelete e retribuir com um banquete, por exemplo. Porém, as alianças formadas entre indivíduos ou grupos para as trocas são vitalícias, sendo considerado amigo apenas aquele que não se recusa a delas participar. Vê-se assim, que estas trocas, para Mauss, estão instituindo a ordem social e são chamadas por ele de fenômenos sociais totais.
3.
Mauss estuda também o potlatch, entre os índios do noroeste americano, a que ele chama de prestações totais do tipo agonística. Estas relações são representadas por combates entre chefes, cada um representado a sua “linhagem”, sendo que estes se enfrentam algumas vezes até a morte. Porém, o potlatch, pode ser também um combate representado pela doação e distribuição das riquezas, ganhando aquele chefe que for mais generoso, ou seja, o que se desfizer de todas as suas riquezas, adquirindo assim honra e prestígio.

4.
Voltando à Polinésia, veremos agora porque é necessário a retribuição. Segundo Mauss, os taongas (coisa dada) estão ligados a quem o deu, ao seu mana, seu espírito, sua força mágica, sendo este tanto um indivíduo como um clã. Este taonga possui um hau, ou seja, o espírito da coisa dada, que é uma propriedade pessoal. Isto faz com que, mesmo após ter sido dada, a coisa, de alguma forma, continue ligada ao seu doador, ou seja, ela não é inerte. “O que, no presente recebido e trocado, cria uma obrigação, é o fato de que a coisa recebida não é inerte. Mesmo abandonada pelo doador, ela ainda é algo dele. Por meio dela, o doador tem uma ascendência sobre o beneficiário (...) Pois o taonga é animado pelo hau de sua floresta, se seu território de seu solo, é verdadeiramente “nativo”: o hau persegue seu detentor” (1974: p.54). O informante de Mauss declara que se ele não retribuir o hau, cairá sobre ele um grande mau, até mesmo a morte. Pode-se perceber então, que a ligação entre o doador e o beneficiário não é apenas material, mas também uma ligação espiritual, um vinculo de almas, através do hau do taonga.

5..
Pensando a questão da religião, Mauss argumenta que há também a obrigação de dar e retribuir entre homens e deuses. Enquanto os homens têm obrigação de realizar oferendas e sacrifícios aos deuses, estes, enquanto verdadeiros proprietários das coisas têm obrigação e sabem retribuir. Muitas vezes o chefe da tribo é o deus personificado e é em nome deste que é feito o sacrifício. Neste âmbito também entra a esmola, onde os deuses concedem que, o que lhes seriam destruídas em “sacrifícios inúteis”, sejam dados aos pobres e às crianças, sendo que Mauss vê aí um “espírito de justiça”, sendo que, aquele que tem uma boa colheita (Sudão, p.65), tem a obrigação de ser generoso, caso contrário, correria o risco de perder seus bens.

6.
Nesta secção, traz-se a conclusão de Marcel Mauss, onde ele traça um paralelo entre as obrigações de dar e receber nas sociedades primitivas e o sistema econômico e social das sociedades modernas.
6.a.
Para Mauss, as sociedades modernas têm papel central nas relações de compra e venda, mas, felizmente as coisas ainda têm um valor sentimental. Ainda quem aceitou a dádiva sem retribuí-la torna-se inferior a quem ofereceu. O convite deve ser retribuído assim como a “cortesia”. Ou seja, na nossa vida social ainda é necessário retribuir, de acordo com o autor, não podemos “ficar em dívida”. Além disso, ainda o convite deve ser feito e ser aceito. Mauss argumenta que até recentemente em algumas partes da Alemanha e da França, toda a aldeia participava da festa de casamento, e a ausência de alguém era vista como mau presságio e prova de inveja. As coisas vendidas têm ainda alguma alma, são ainda seguidas e seguem seu antigo proprietário. Ele dá alguns exemplos de alguns procedimentos utilizados para separar a coisa comprada do antigo proprietário, como por exemplo, para os animais comprados esquecessem seu antigo dono e não desejassem retornar a casa deste era necessário chicotear o animal, entre outros procedimentos.
Mas é nas relações comerciais, entre industriais e trabalhadores, que Mauss mais aprofunda suas idéias, podendo-se perceber aí uma forte influência de seu posicionamento político, o socialismo. Em primeiro lugar, o autor vê uma “desumanização” no desenvolvimento de nossa sociedade, nossos códigos. Assim como Marx vê um “regresso” econômico, sendo que o sistema capitalista estaria fadado a ruína, pois as sociedades teriam uma tendência a voltar às sociedades coletivas, Mauss vê esse regresso no campo do direito e da moral. Para ele, os direitos entre comerciantes e industriais acham-se em conflito com a moral, já que os produtores têm uma vontade de acompanhar o que eles produziram, tendo também a aguda sensação de que eles não participam dos lucros. Então, ele acredita que um retorno a alguns costumes antigos seria uma reação sadia ao sistema capitalista, porém, adaptados à sociedade moderna. Um direito mais próximo à vida social e moral e não tão insensível.
O trabalhador deu sua vida e seu trabalho à coletividade, de um lado, e de outro a seus patrões. Em conseqüência disso, os trabalhadores mereceriam mais do que seus salários. Os custos com a previdência social e a seguridade (contra doença, desemprego, etc.) de seus trabalhadores deveria fazer parte das despesas de cada indústria. Sendo assim, os ricos se tornariam mais generosos; enquanto os pobres teriam que ter maior consciência do quanto contribuem para a coletividade, para assim, cobrarem uma restituição das dádivas que oferecem durante toda a sua vida e defender seus interesses.
Ele ressalta que é preciso que os ricos redescubram a importância de dar, que chama de “dispêndio nobre”. Os ricos então, de maneira livre, mas também obrigatória, tornar-se-iam uma espécie de tesoureiros dos bens de seus concidadãos. Comparando com as sociedades antigas, ele reconhece uma necessária hierarquia na sociedade moderna, na qual os ricos exerceriam o papel dos antigos chefes das sociedades tribal. “A seguir, é preciso mais preocupação com o indivíduo, sua vida, sua saúde, sua educação –o que é rentável, aliás -, sua família e o futuro desta. É preciso mais boa fé, sensibilidade e generosidade nos contratos de arrendamento de serviços, de locação de imóveis, de venda de gêneros alimentícios necessários. E será preciso que se encontre o meio de limitar os frutos da especulação e da usura”. O trabalho, então, é sempre visto como uma dádiva. O indivíduo precisa trabalhar, precisa aprender que deve contar mais com si do que com os outros, defendendo seus interesses pessoais e do grupo. Para o autor, o excesso de comunismo seria tão prejudicial quanto o do individualismo de nossos contemporâneos. O que podemos perceber, é que Mauss defende que os pobres devem tornar-se mais individualistas, defendendo seus interesses, e o rico, menos individualista e mais solidário. Ora, este princípio de dar e receber faz parte do espírito social humano e é por isso que o indivíduo tende a voltar a ele.
6.b.
Em relação à economia, Mauss relata que, mesmo que os economistas tentem comparar os sistemas econômicos em diversas sociedades, em muitas delas a acumulação de riquezas não tem um valor mercantil. Argumenta que os gastos luxuosos muitas vezes têm caráter religioso, cercado de ritos, mitos, cerimoniais e obrigações rituais. Não que estas dádivas sejam desinteressadas. Pelo contrário, elas têm interesses em pagar serviços e coisas e também manter alianças proveitosas que não podem ser recusadas. Mesmo no potlatch onde há um grande dispêndio das riquezas, muitas vezes parecendo um prazer infantil de destruir somente pelo prazer de destruir, não é desinteressado. Essas dádivas estabelecem hierarquia entre chefes e vassalos, entre vassalos e servidores. Dar é manifestar superioridade. Essa superioridade também pode ser percebida quando se retribui com um bem maior do que o recebido. Não se retribui com usura apenas para recompensar o doador, mas também para humilhá-lo.
Pode-se ver assim, que mesmo havendo interesse, esses interesses nem sempre são econômicos. De acordo com Mauss, foi nossa sociedade que transformou o homem num “animal econômico”. De acordo com ele, ainda pode-se encontrar entre as massas e as elites um dispêndio “puro e irracional”. Reconhece que é necessário gastar não apenas com puro dispêndio, mas que este é necessário para estabelecer a paz ao conjunto e ao indivíduo. Homens seguros de serem devidamente recompensados, executam melhor seus trabalhos e com maior rendimento. Está aí a noção de dom e dádiva entre a indústria e o produtor.
6.c.
Por fim, Mauss coloca que os fatos estudados são fatos sociais totais, pois põem em ação a totalidade da sociedade e suas instituições, como já foi dito no início do trabalho. Segundo ele, as sociedades não são estudadas como imóveis, mas sim no seu estado dinâmico, e nem foram dissecadas (direitos, ritos, valores, etc.). A sociedade foi estudada como um todo vivo em movimento.
É necessário, segundo ele, o estudo de fatos sociais, primeiro, para atingir a generalidade, descobrindo o fato que tem chance de ser universal. Mas sobretudo, tem a vantagem de ser realidade. “Conseguem-se assim ver as próprias coisas sociais, no concreto, como são. Nas sociedades, apreendemos mais que idéias ou regras, apreendemos homens, grupos e seus comportamentos”. Vê-se em Mauss uma necessidade de observar a sociedade em sua totalidade e não separada em diversos elementos.
Fazendo uma espécie de crítica às sociedades modernas, Mauss argumenta que as sociedades mais dadivosas eram menos tristes, menos avarentos, menos sérios, mais alegres, mais generosos. Nestas sociedades não haveria meio termo, ou se confia ou não; renunciando a autonomia e dispondo-se a dar e retribuir. De acordo com ele, eles na tinham escolha. Quando dois grupos se encontram, ou se afastam ou combatem, ou negociam, vivendo numa instabilidade entre a festa e a guerra. Dessa forma, muitos povos substituíram a guerra e/ou o isolamento pela estagnação pela aliança, a dádiva e o comércio. Por fim, segundo o autor essa sabedoria e solidariedade de depor as armas deverá ser sabidas no futuro de nossa sociedade, sem massacrar nem se opor, sabendo dar sem se sacrificar. Para encerrar, uma bela, talvez bastante utópica, citação de Mauss, que contém muito de seus princípios socialistas: “Os povos, as classes, as famílias, os indivíduos poderão enriquecer, mas só serão felizes quando souberem sentar-se, como cavalheiros, em torno da riqueza comum. Inútil buscar muito longe qual é o bem e a felicidade. Eles estão aí, na paz imposta, no trabalho bem ritmado, alternadamente comum e solitário, na riqueza acumulada e depois redistribuída, no respeito mútuo e na generosidade recíproca que a educação ensina”.

Consultas extras:
Marcel Mauss. pt.wikipedia.org/wiki/Marcel_Mauss
Lanna, Marcos. Notas sobre Marcel Mauss e o Ensaio sobre a dádiva. www.scielo.br/scielo.phd
Rehen, Lucas Kastrup. Ensaio sobre a Dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. www.unir.br

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