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terça-feira, 9 de março de 2010

Texto de Miriam Leitão, sobre Cotas

Domingo, Março 07, 2010
MÍRIAM LEITÃO Destruir a obra -
O GLOBO - 07/03/10

É a temporada. Tempo de sofismas e argumentos tortos. Tempo das
mesmices repetidas com ares de descobertas recentes. Hora de escapar
do debate sobre a questão racial brasileira.

Não precisava ser assim. Podia ser um tempo de avanços. Mas os que
negam o racismo brasileiro preferem esse cerco à inteligência, ao
óbvio, ao progresso.

Num ambiente negacionista, foi um alívio ouvir as explicações simples
e diretas da secretária de Estado americana Hillary Clinton na
Faculdade Zumbi dos Palmares, onde escolheu debater com estudantes.
Hillary defendeu as ações afirmativas dizendo que, com elas, os EUA
estão deixando para trás os vestígios da escravidão: -- Temos feito um
grande progresso com as ações afirmativas em aumentar as oportunidades
na educação, no emprego para os afro-americanos. Elas são o
reconhecimento de que as barreiras históricas criam um funil que
impede o acesso do grupo discriminado a níveis superiores de educação.

É preciso alargar a entrada e deixar mais gente entrar. O talento é
universal, mas as oportunidades, não. O acesso na universidade não é,
no entanto, a garantia da graduação.

Hillary contou que, como professora de Direito, percebeu que muitos
alunos que entraram por ação afirmativa tiveram dificuldades maiores
pelas falhas da educação anterior. Ela se dedicou a esses alunos no
sistema tutorial: ? Simplesmente não podemos aceitar os estudantes na
universidade para deixar que eles falhem. Eles têm que ser ajudados.

O sistema americano é diferente do nosso, mas discriminação é parecida
em qualquer país do mundo. Ela barra com obstáculos sutis ou
explícitos, negados ou assumidos, a ascensão de grupos discriminados
por qualquer motivo, racismo, sexismo, ou outras intolerâncias.

Lá, eles não têm cotas, não têm vestibular; o sistema, como se sabe, é
o de application, o de se candidatar a uma vaga apresentando suas
credenciais escolares. Ao avaliar quem entra, as escolas dão pontuação
maior a quem vem de um grupo discriminado.

Cada universidade tem um critério, um método e uma meta diferente, mas
todas buscam um quadro de alunos com diversidade.

Os alunos com menos chance de estar lá têm preferência nas bolsas para
as caríssimas universidades privadas americanas.

-- Estou muito orgulhosa das conquistas dos últimos 50 anos do
movimento dos direitos civis, pelos que lutaram como Martin Luther
King e outros, mas não posso dizer que o meu país não tem racismo, não
tem sexismo -- disse a mulher que comanda a mais poderosa diplomacia do
mundo e é chefiada por um negro, que preside o maior país do mundo.
Ela não vê a sua ascensão, nem a do presidente Obama, como provas de
que não há barreiras para negros e mulheres.

Essa sinceridade é encantadora porque é rara no Brasil.

Esse reconhecimento da existência do problema, e de que ele é vencido
por ações concretas de políticas públicas e de empresas, dá esperança.

No Brasil, o esforço focado nos negros é chamado de discriminação. E
os brancos pobres? Perguntam.

Eles estão também nas ações afirmativas, e nas cotas, mas o curioso é
que só se lembre dos brancos pobres no momento em que se fala em
alguma política favorável a pretos e pardos.

É temporada da coleção de argumentos velhos que reaparecem para evitar
que o Brasil faça o que sugeriu Joaquim Nabuco, morto há 100 anos, em
frase memorável: "Não basta acabar com a escravidão. É preciso
destruir sua obra." Diante de qualquer proposta para reduzir as
desigualdades raciais, principal obra da escravidão, aparece alguém
para declamar: "Todos são iguais perante a lei." E são. Mas o
tratamento diferenciado aos discriminados existe exatamente para
igualar oportunidades e garantir o princípio constitucional.

O senador Demóstenes foi ao Supremo Tribunal Federal com um argumento
extremado: o de que os escravos foram corresponsáveis pela escravidão.
"Todos nós sabemos que a África subsaariana forneceu escravos para o
mundo antigo, para a Europa.

Não deveriam ter chegado na condição de escravos, mas chegaram. Até o
princípio do século XX, o escravo era o principal item de exportação
da pauta econômica africana." Pela tese do senador, eles exportaram, o
Brasil importou.

Simples. Aonde o crime? Tratava-se apenas de pauta de comércio exterior.

Por ele, o fato de ter havido escravos na África; conflitos entre
tribos; tribos que capturavam outras para entregar aos traficantes, e
tudo o mais, que sabemos, sobre a história africana, isenta de culpa
os escravizadores.

Trazido a valor presente, se algumas mulheres são vítimas de violência
dos maridos, isso autoriza todos a agredi-las. Ou se há no Brasil
casos de trabalho escravo e degradante, isso permite aos outros povos
que façam o mesmo conosco. Qual o crime? Se brasileiros levam outros
brasileiros para áreas distantes e, com armas e falsas dívidas, os
fazem trabalhar sem direitos, qualquer povo pode escravizar os
brasileiros.

O senador Demóstenes é um famoso sem noção e com ele não vale a pena
gastar munição e argumentos. Que ele fique com sua pobreza de
espírito. O que me incomoda é a incapacidade reiterada que vejo em
tantos brasileiros de se dar conta do crime hediondo, do genocídio que
foi a escravidão brasileira.

Não creio que as ações afirmativas sejam o acerto com esse passado.

Não há acerto possível com um passado tão abjeto e repulsivo, mas
feliz é a Nação que reconhece a marca dos erros em sua história e
trabalha para construir um futuro novo. Feliz a Nação que tem, entre
seus fundadores, um Joaquim Nabuco, que nos aconselha a destruir a
obra da escravidão.

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